domingo, 3 de janeiro de 2010

CRISE? QUAL CRISE?

Texto publicado na edição do Expresso de 19 de Dezembro de 2009, da autoria de Miguel Sousa Tavares.


«De repente, parece que acordaram todos para a situação de iminente descalabro nas contas públicas. As notícias que vêm da Grécia - onde o Estado está à beira da falência e o povo à beira da guerra civil - tiveram o condão de pôr algumas cabeças finalmente a meditar sobre a origem e os limites dos dinheiros públicos. Uma ilustre plateia de economistas reuniu-se expressamente para acusar de "mentiroso" o ministro das Finanças e apelar ao corte radical da despesa pública, isto é, dos gastos com os funcionários ao seu serviço.


Infelizmente, porém, não lhes ouvi uma palavrinha sobre a necessidade de cortar também nos "negócios de regime" com os fregueses do costume. E, apesar de entre eles estar o presidente da União de Bancos, também não se lhes ouviu um lamento sobre os 4 mil milhões de euros que o Governo já espetou no BPN e mais os outros milhões que se prepara para dar aos clientes do BPP que apostaram no lucro fácil e acabaram por cair facilmente na tramóia que o banco lhes montou (e que agora, nós, os prudentes, temos de pagar com os nossos impostos). Aliás, era antes, quando o BPN e o BPP andavam por aí a oferecer juros mirabolantes e "retornos garantidos", que teria sido saudável escutar uma palavrinha de aviso da ilustre plateia. Afinal de contas, para que servem os economistas? Hugo Chávez disse em Copenhaga que, se o clima fosse um banco, já estava salvo. Tem toda a razão: a União Europeia propunha-se dar 2 mil milhões de euros por ano para ajudar todos os países subdesenvolvidos a adoptarem medidas de contenção da poluição atmosférica. O dobro disso deram os contribuintes portugueses, em menos de um ano, para salvar o BPN e não se vê ainda o fim do regabofe.

É fácil aconselhar o corte na despesa com o funcionalismo. Fácil e talvez inevitável, no ponto a que isto chegou. Mas essa não é a única despesa "não virtuosa" do Estado. Há mais e pior. Estamos em crise económica porque o crescimento é incipiente e estamos em crise financeira porque o Estado gasta mais do que tem. Uma e outra coisa têm a mesma origem: a economia só arranca quando é o Estado a empurrar e, à força de empurrar, o Estado está falido.

Mas há também o reverso da medalha e felizmente que nem todos estão pessimistas. Jerónimo de Sousa, por exemplo, afirmou com veemência que se recusa a aceitar a "fatalidade" da crise financeira. Eu também gostava de recusar, mas não sei como se faz: vê-se a tempestade a avançar no horizonte e enfia-se a cabeça na areia com a esperança de que ela passe por nós sem nos ver? O que nos trouxe até aqui e agrava a nossa situação é justamente esta confluência ideológica entre os nossos capitalistas e os nossos comunistas: todos acreditam que a generosidade dos dinheiros públicos é um direito natural e um recurso inesgotável.

Crise? Sim, mas devagar. Os velhos hábitos demoraram séculos a entranhar-se e não são para largar assim do pé para a mão, só porque há para aí uns organismos internacionais que se puseram a olhar para as nossas contas e não descobriram como é que vamos conseguir pagar as dívidas sem uma violenta inversão dos nossos hábitos culturais ancestrais. Nestas alturas, não há nada como o patriotismo para enfrentar os "estrangeiros" e a crise - como o autarca de Paredes, que vai gastar pelo menos 1 milhão de euros a erguer um mastro com 100 metros de altura, no topo do qual, flutuará, invencível, a bandeira nacional a lembrar os 100 anos de República. Ou como os autarcas de Lisboa e de Oeiras, que descobriram uns milhões sobejantes (parece que com o auxílio de empresas públicas) para roubar os aviõezinhos ao Porto, porque já o Rock in Rio (onde a CML gasta uns milhões largos a favor do negócio daquele brasileiro esperto) lhes parece pouco.

O próprio Governo dá o exemplo de que as coisas não são assim tão más. Em troca do voto dos deputados da Madeira ao terceiro orçamento do ano e talvez ao próximo, o dr. Jardim lá foi autorizado, uma vez mais, a endividar-se para lá do que ele pode pagar e nós estaríamos dispostos a pagar. Sentado em cima da segunda região mais rica do país (e a única que aumentou o rendimento per capita nos últimos anos), o dr. Jardim é um mestre na arte de "governar": "O quê, vocês fizeram as contas mal aí no continente, e agora precisam de autorização para se endividarem mais? Ah, como eu os percebo! Ora, autorizem-me aqui os meus 80 milhões a mais e eu dou ordens aos meus rapazes aí no vosso Parlamento para votarem tudo o que o Governo daí quiser. E, depois de ter cá o meu dinheirinho, preparem-se para ouvir o que eu tenho a dizer sobre esses ladrões dos socialistas!".

Confortado com a solidariedade do Big Spender insular, José Sócrates por aí andou esta semana a prometer mais e mais, se o deixarem governar. Inaugurou qualquer coisa irreversível desse grande e ruinoso projecto chamado TGV, que, ao que parece, é um imperativo constitucional ou um sinal da existência pátria, tão importante como a bandeira do autarca de Paredes ou o Mundial de Futebol a que o dr. Madaíl nos candidatou sem pedir a opinião a ninguém (e ainda há aquele eterno presidente do COI, que não descansa enquanto não nos impingir uns Jogos Olímpicos). Em Beja entre camaradas, Sócrates regressou a outro imperativo constitucional, tão ruinoso como construir comboios de luxo para passageiros inexistentes: a sagrada regionalização, esse radioso amanhã que canta na cabeça de cada cacique partidário do "Portugal profundo".

Anunciou que as regiões vão ser cinco - para grande desgosto da gente local, que contava com mais uma sexta, com capital em Beja. Pena que não tenha tratado o assunto a sério, acrescentando, por exemplo: "As regiões são cinco e para elas eu vou dar um TGV, meio aeroporto, dois BPN, seis Air Bull Race e 400% da dívida acumulada da Região da Madeira. E esse dinheiro vou buscá-lo a... a... a Bruxelas. Bem, enfim, não todo, claro, algum há-de vir das pensões, dos salários dos funcionários públicos (excepto os dos professores, porque já estarão todos no topo da carreira), ou talvez se possa até prescindir de um dos submarinos, agora que o CEMGFA acaba de declarar que nem sabe o que há-de fazer com o primeiro deles, que chega já para o mês que vem. Também podemos vender a Caixa, a TAP, as Águas, o que sobra da Rede Natura e da Reserva Ecológica, e podemos vender a Portela às low cost - que, aliás, já são quase donas daquilo. O dinheiro não é problema: o país é que não pode parar!".

Há duas maneiras de governar os países: a grega e a outra. A nossa é a grega e, acreditem, acaba sempre mal. »

sábado, 2 de janeiro de 2010

UM TEXTO QUE AJUDA A PERCEBER ALGUMA COISA

Responsabilidade: impostos ou despesa?


Há duas teses em confronto contra a crise: a defendida por Sócrates baseada no keynesianismo, e a dos supply-siders, recusada por Sócrates

No último debate no Parlamento, José Sócrates afirmou que seria uma irresponsabilidade baixar os impostos, dado o seu efeito nas contas públicas. Ao mesmo tempo, reafirmou o compromisso de aumentar o investimento público, apesar do défice que dele resulta. Contradição? Nem por isso, depende de dois pressupostos.

Para perceber porquê, reparem que o défice público é igual aos gastos do Estado (G) menos as receitas, que por sua vez são iguais à taxa de imposto (T) vezes o rendimento do país (Y). (Claro que isto é uma simplificação, até por¬que há varias taxas de imposto, mas ela não altera o ponto prin¬cipal.) Numa equação simples: Défice =G-TxY.

O compromisso do primeiro-ministro de aumentar o investimento público (G) parte do pressuposto de que isso vai causar um aumento no PIB (Y). Ou seja, que o investimento público vai estimular a economia. Logo, o efeito no défice será atenuado pelo aumento nas receitas, e esta é uma medida responsável. Este raciocínio está na base do Keynesianismo. Sócrates claramente perfilha este ponto de vista. Em contrapartida, reduzir os impostos também estimula a economia Se as pessoas pagam menos impostos, têm um incentivo para trabalhar mais e investir mais. Logo, baixar impostos (T) também aumenta o rendimento (Y). Os economistas que acreditam que este efeito é grande chamam-se supply-siders. Sócrates deve achar que eles estão errados.

O segundo pressuposto tem a ver com os défices futuros. Implicitamente, Sócrates deve acreditar que os aumentos na despesa pública para combater a crise serão temporários. Quando a economia melhorar, será fácil reduzi-los e resolver o défice. O pressuposto contrário é que, cortando os impostos hoje, será fácil aumentá-los no futuro quando a crise passar.

A posição do primeiro-ministro é por isso coerente. Ele acredita, legitimamente, que aumentos nos gastos públicos são mais eficazes no estímulo à economia, e que será fácil cortar no tamanho do Estado no futuro.

O que dizem os dados? Estando tanto em jogo, não é surpreendente que este seja um tema con-troverso. A última palavra (mesmo assim não conclusiva) vem dos economistas Alberto Alesina e Silvia Ardagna que usaram dados para a OCDE entre 1970 e 2007 para obter dois resultados. Primeiro, os cortes nos impostos são mais eficazes do que os aumentos na despesa pública no estímulo ao crescimento económico. Segundo, as tentativas de reduzir o défice têm maior sucesso se forem alcançadas por via de cortes nas despesas, em vez de por via de subidas nos impostos.

Sócrates está em boa companhia a maior parte dos países ocidentais optaram também sobretudo pela via da despesa Mas se a economia oferece pressupostos teóricos que justificam esta opção, ela não oferece respostas conclusivas sobre se será a melhor opção ou não.

RICARDO REIS, Professor de Economia, Universidade de Columbia, jornal I, 2 Jan 2010

OS COMUNISTAS

Os comunistas que eu conheço não me parecem homens livres, no sentido que tinha, antigamente, a expressão "livre-pensador"...

Do meu ponto de vista essa é a sua grande (irremediável?) fragilidade política. Fora da ortodoxia de catecismo não são capazes de dizer nada de verdadeiramente esclarecedor sobre a realidade sócio-política que nos rodeia, nada que abra caminhos de compromisso político numa sociedade que não pensa maioritariamente como eles. Há dezenas de anos que as "teses", as "análises políticas", os "comunicados do C Central", etc., repetem o mesmo jargão, de que já sabemos o fim assim que lemos o primeiro parágrafo.

Porque é que ainda me ralo com isso? Não é por espírito de missão. É porque me chateia - e muito! - que um ideal em que acreditei e pelo qual lutei seja, afinal, uma enorme ilusão, como a História do séc. XX amplamente documenta mas que os comunistas portugueses teimam em ignorar. Para eles foi tudo uma questão de más práticas que o PCP em Portugal nunca teve nem nunca terá. Mas quem está de fora vê bem como as suas práticas são exactamente as mesmas que levaram aos regimes totalitários que eles criticam. Não os critico por ser anti-comunista primário, ou por estar a soldo da burguesia ou por outras fatuidades com que os comunistas brindam os que não concordam com eles e têm a ousadia de o dizerem em voz alta. Critico-os porque sou LIVRE! Porque não acredito em ortodoxias doutrinárias, de carácter político ou religioso. Porque acredito que o futuro da humanidade não está em vanguardas iluminadas mas sim em homens livres, instruídos e respeitadores dos outros homens.

Os comunistas não são homens livres, também porque a sua ideologia, denunciando a religião como ópio do povo, os leva a organizarem-se e a agir como membros de uma seita religiosa.

A este propósito é muito interessante este extracto do Blogue " DE RERUM NATURA", de 28 de Outubro de 2009:


Excerto do último livro do filósofo e escritor Onésimo Teotónio Almeida, "De Marx a Darwin. A Desconfiança das Ideologias", publicado há pouco na Gradiva:

"O marxismo aparece deste modo - Karl Popper apontou-o muito bem - como sistema metafísico não-falsificável, com todos os atributos de uma religião que opera enraizada numa fé não assente em princípios empíricos nem jamais sujeita à obrigação de demonstrações racionais dos seus axiomas de base. Esse sistema metafísico aliás - e não me parece de modo nenhum absurdo aventá-lo - seria assim uma espécie de versão secular da história bíblica judaico-cristã. O paraíso terreal existiu de facto e o ser humano era bom, mas o capitalismo foi, infelizmente, o pecado original que lançou a humanidade na senda de uma história de lutas de classes. No entanto, Marx vai ser o profeta da recuperação do estado original de graça. Fundando a sua Igreja e rodeando-se dos seus apóstolos, vai fazê-los militar na luta pela segunda vinda dessa ordem natural onde de novo reinará o bom selvagem. A felicidade, porém, não acontecerá no outro mundo, mas sim neste, e inevitavelmente virá.
Acredito que haja nesta síntese algo de exageradamente redutor, todavia insisto na paridade lógica das duas metafísicas - a marxista e a cristã. O carácter dogmático da sua doutrina é apenas uma faceta adicional a intensificar a legitimidade desse paralelo."

Onésimo Teotónio de Almeida