quarta-feira, 28 de abril de 2010

O GRANDE RIO DO TEMPO





PEQUENAS COISAS

Pedrinhas que se apanham no chão da praia. Recordações que ficam sobre os móveis, à espera de alguém que pergunte «De onde é que isto veio?» ou grite, zangado «Esta casa está cheia de porcarias, é só lixo, só lixo...» - limpando o pó, ira controlada.

«Travessa dos Sete Cantos» é isso: pedrinhas, horas que se vivem ou já passaram, partilha com a terra onde nasci e cresci, regresso ao mundo perdido, referência para as navegações do presente. Breves encontros à esquina daquela travessa por onde eu passava com o António Pereira, caminho da escola e dos rigores do Prof. Oliveira ou Prof. Dinis - TRAVESSA DOS SETE CANTOS que é, afinal, o símbolo das voltas da vida.

E POR FALAR EM PROF. DINIS.

Evoco hoje esse pedagogo que ensinou tantas gerações de jovens, na Escola Primária do Visconde de Barroso, em Alpiarça, nos anos 50 e 60. A sala dele era logo à entrada, do lado direito, no velho edifício da Rua José Relvas, frente à casa da família do Dr. Neves.

Ser aluno do professor Dinis era uma promoção no meio da miudagem. Isto porque ele tinha fama de severo e exigente. Era ele que preparava os que pretendiam seguir estudos e, portanto, tinham de ir ao Exame de Admissão em Santarém, no final da 4.a Classe. Quem passava para a sala do prof. Dinis subia na consideração e respeito dos colegas de escola. Tornava-se senhor no pátio de recreio. Tinha direito a escolher campo para jogar à bola. Ou para decidir jogar ao berlinde ou ao «agarra». Outra vantagem de ser aluno do prof. Dinis era que a Gracelina (auxiliar de acção educativa de velha memória...) deixava de nos moer o juízo por não estarmos quietos na fila de entrada, quando tocava a sineta. Quem pagava eram os «betinhos» da D. Filipa!

O prof. Dinis era um homenzarrão. Grandes manápulas, ar sisudo, voz de barítono a comandar o ditado. Bata branca e caninha da índia, raramente usava a régua: os calduços no cachaço eram suficientes para manter o temor em níveis eficazes. Ora eu já tinha passado um ano com a cara de pau do Prof. Oliveira - homem azedo e revoltado que vim a encontrar anos mais tarde na sua terra, Sobral de Monte Agraço, muito velho e taralhouco, a chorar saudades da vida e que se agarrou a mim comovidamente, numa despedida pressentida. Portanto, depois do Oliveira, ser aluno do Dinis era um doce e só trazia prestígio.

Foi um bom ano, esse, 1957. Tornei-me amigo inseparável do filho do professor - o António José, que reencontrei na tropa, em Tancos, e depois nunca mais vi, nem sei se lê este jornal. E fiz, com o Leonel Piscalho, saudoso amigo que está em Moçambique de onde nos envia aquelas crónicas emocionantes, fiz com ele uma dupla de rivais, a ver quem tinha melhores resultados nos testes de avaliação. Mas nunca nos zangámos. Já docente em Torres Vedras, um dia fui a Lisboa numa manifestação de professores. Era em 1975 ou 76, anos de abolição de fronteiras. Quem encontro eu, agarrado ao pau de uma faixa onde se lia uma qualquer palavra de ordem revolucionária? O professor Dinis! Na dúvida e à socapa, ainda o mirei de vários ângulos, antes de lhe dar aquele abraço. Afinal até nem era um homenzarrão e aquelas mãos nada tinham de gigante. Pela primeira vez - parecia-me - o seu rosto era um imenso sorriso.

Nunca mais o vi. Nunca mais soube nada dele, nem da sua mulher, que também foi professora em Alpiarça, a Dona Joana, senhora muito serena, que pelo modo de ser deixava nos alunos um rasto de doçura. Hoje, ao recordá-los, presto a minha singela homenagem ao seu trabalho e ao de todos os antigos «professores do Ensino Primário» que passaram pelas escolas de Alpiarça, alguns dos quais aqui viveram muitos anos. Para além dos já referidos, quem não recorda o professor Faia, a Dona Amélia (que já mal falava, de cordas vocais destroçadas pelos anos de docência), a Dona Flor? E aqueles de quem já não recordo os nomes mas que deixaram rasto em tantos jovens de Alpiarça?

PEQUENAS COISAS

Recordações que são como pedras na construção do muro das nossas vidas.
Ó personagens do passado! Professores do tempo em que eram pagos miseravelmente para ensinar crianças que vinham descalças para a escola, os pés cheios de «bichacas», e calções rotos de cotim, fosse verão ou inverno. Vós sois as marcas de humanidade que se prolongam naqueles que vos conheceram. Vejo-vos ainda, mas já delidos na lembrança, elos desta corrente contínua, gotas do grande rio que o caudal do tempo leva até à foz: à Luz redentora ou ao esquecimento definitivo.

Joaquim Moedas Duarte, VOZ DE ALPIARÇA, 15 de Dezembro de 2003